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Uma miniaula de microbiologia: o caso do “arroz contaminado”


Há algum tempo atrás, circulou no Whatsapp um boato dizendo que universitários teriam contaminado plantações de arroz no Brasil com vírus e bactérias capazes de infectar o estômago e causar a morte de quem comesse. O governo escondeu o caso porque não teria dinheiro para retirar os microrganismos. Obviamente, o cidadão, que descobriu o segredo no melhor estilo “James Bond”, caridosamente pede que você espalhe isso para o maior número de pessoas.

Sério: por que essas pessoas inventam esse tipo de abobrinha? Essa “fan fiction” é curta, mas não o suficiente para não ter um monte de problemas, de verossimilhança com a realidade e científicos. Por exemplo, por que o governo simplesmente não joga o arroz fora? Ele é de fato tão estúpido que prefere ter uma epidemia de uma doença mortal? Ou por que raios os universitários iriam cometer tal ato de bioterrorismo? Seria tipo um trote, “os calouros que não contaminarem o arroz vão ficar carecas”? Não faz nenhum sentido.

Mas, digamos que fosse uma forma de protesto extremamente radical e sequelado contra os cortes do orçamento para investimentos em Ciência e Tecnologia (por favor, não encarem isso como uma sugestão!), seria possível contaminar uma plantação de arroz com um microrganismo mortal?

Seria muito difícil. Começando por qual microrganismo usar para contaminar a plantação. Segundo o boato, a doença começa com uma infecção no estômago. O problema que o estômago é um ambiente bem ingrato para bactérias ou vírus crescerem porque é muito ácido. Por isso, há pouco tempo atrás se imaginava que o estômago era um local livre de bactérias. Até a descoberta da Helicobacter pylori (já contei a história da descoberta dela aqui). Então a H. pylori seria a escolha? Uma escolha ruim. Mais de metade das pessoas já estão contaminadas com a bactéria, mas a grande maioria nunca vai ficar doente por isso. Uma pequena parte pode ter úlceras (que é uma ferida na parede do estômago, que dói bastante) e uma menor ainda pode acabar com câncer no estômago. Ou seja, a H. pylori está longe de ser uma bactéria mortal e logo não vai ser muito eficiente em matar pessoas.

Esquecendo então a história de infectar o estômago, os terroristas poderiam pensar em alguma outra doença, que se pega pela comida. Talvez a bactéria Escherichia coli fosse usada. A infecção por alguns tipos dessa bactéria podem causar infecções intestinais com diarreia. Algumas vezes a doença pode ser bem grave e levar a morte, mas é raro e ocorre mais em crianças pequenas e idosos. As pessoas se contaminam com a E. coli principalmente através da água contaminada (bebendo, lavando comida com ela ou tomando banho) e carne malcozida e leite fresco. Mas essa bactéria não viveria muito tempo no ambiente exposto de uma plantação de arroz, no máximo uma semana. No tempo entre a contaminação da plantação até o arroz chegar a sua casa, provavelmente a bactéria já teria morrido. Além disso, essa bactéria é pouco resistente ao calor; assim possivelmente o calor do cozimento do arroz seria capaz de matar o microrganismo e impedir a infecção (ninguém come arroz cru, certo?).

Outras possibilidades seriam a bactéria Salmonella e o vírus Norovirus. Esses dois até poderiam sobreviver mais tempo no ambiente da plantação e contaminar os sacos de arroz. Mas eles também costumam contaminar as pessoas através de alimentos crus (o Norovirus também pode passar de pessoa para pessoa). Assim, o arroz cozinhado direito teria uma chance bem pequena de contaminar alguém.

A melhor opção seria a bactéria Bacillus cereus. Essa bactéria já está normalmente associada ao arroz e outros cereais, e a infecção causa náusea, vomito e diarreia. E esse microrganismo tem algumas características que lhe dão um potencial de infecção maior que os outros da lista. Primeiro, essa bactéria é capaz de se transformar em uma forma resistente a altas temperatura e que sobrevive por longos períodos, chamada endósporo. Além disso, a B. cereus produz proteínas tóxicas chamadas enterotoxinas, que podem ser extremamente resistentes a altas temperaturas e ambientes ácidos (como o estômago). Assim, os endósporos podem sobreviver ao cozimento do arroz e depois começar a se multiplicar na panela, especialmente se a comida for deixada fora da geladeira. Quem comer o arroz então pode ter a infecção. E mesmo que o cozimento mate todas as bactérias, se elas já tiverem produzido as enterotoxinas, a pessoas que consumir o arroz pode ter os sintomas. Mas a doença raramente é fatal; a maioria dos doentes melhora após 24 horas.

Mudando um pouco mais a história original então: digamos que os universitários decidiram contaminar a plantação com B. cereus para deixar pessoas doentes (já que matar não vai dar). Como contaminar uma plantação inteira? Primeiro, os universitários terroristas precisam conseguir a bactéria. Estando em uma universidade pode parecer fácil; de fato cientistas em várias partes do Brasil estudam a B. cereus. Porém, muitos desses pesquisadores fazem análises epidemiológicas apenas, ou seja, procuram pela presença da bactéria em alimentos vendidos e em pacientes. Não necessariamente esses laboratórios vão ter amostras da bactéria estocadas. O segundo ponto, e talvez mais crítico, é como cultivar uma quantidade suficientemente grande de bactérias para contaminar uma plantação inteira. Esqueça essas coisas de filme de ficção científica; o vilão não vai chegar com um tubinho de laboratório no bolso, abrir, jogar numa planta e ver as bactérias se espalhando pelo terreno, enquanto ele ri de modo sinistro. Os terroristas iriam precisar crescer um caminhão-pipa de bactérias. Isso vai ser caro, com grande gasto de dinheiro em meios de culturas para crescer as bactérias e com equipamentos industriais com um imenso volume de produção. E eles vão precisar usar algo pouco discreto para espalhar as bactérias, tipo um caminhão tanque do corpo de bombeiros, um avião borrifador daqueles de agrotóxicos, ou um exército de universitários com aquelas máquinas borrifadoras. O que nos leva ao terceiro problema: como contaminar a plantação sem que nenhum funcionário da fazenda perceba?

Bem difícil. Talvez uma solução fosse não contaminar a plantação, mas sim os silos (aqueles locais onde os grãos ficam armazenados). Muito arroz, já colhido, tudo junto, em um local pequeno (ou, pelo menos, menor que uma plantação), fechado e abrigado do sol, da chuva e do vento. Seriam necessárias menos bactérias para contaminar todo o estoque e daria para ser feito de modo mais discreto.
Bem, vou parar de dar ideia para outras “fanfics” ou para terroristas de verdade (talvez devesse começar a escrever meus próprios livros de ficção; pelo menos eles seriam verossímeis). Mas espero ter convencido vocês que essa história de contaminar plantação de arroz é uma grande viagem.

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