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Leite e câncer: o que a Ciência diz de verdade?


O blogue “Cura pela Natureza” tem o selo R7 da Record e mais de 3,5 milhões de seguidores no Facebook. Deve ser bom então. Mas não é. As postagens são sensacionalistas, iscas para cliques, e com pouca (ou nenhuma) evidência científica para apoiar o que afirmam. Essa postagem do ano passado, por exemplo, não tem sequer uma informação confiável. Ela diz que o consumo de leite causa câncer de mama. Vou mostrar para vocês que não há nenhuma evidência disso, e espero abrir seus olhos para esse tipo de publicação.

No começo do texto, se diz que uma tal Patricia Moorman publicou um trabalho científico apresentando algumas hipóteses sobre como leite e câncer estão relacionados. Patricia Moorman existe? Sim, ela é pesquisadora na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, e trabalha com epidemiologia de câncer de mama. Esse trabalho científico foi publicado? Sim, em 2004, na revista American Journal of Clinical Nutrition. O que ele diz sobre a relação leite e câncer de mama? No primeiro parágrafo do texto, Dra. Moorman diz claramente que não existe relação comprovada entre o consumo de leite e a incidência de câncer de mama (MOORMAN; TERRY, 2004). Ou seja, pegaram um trabalho científico e escolheram explicar só a parte que era interessante para o ponto de vista da postagem, uma postura bem pouco imparcial, logo bem pouco científica.

Depois, temos um vídeo do Dr. Lair Ribeiro (de novo?!?) dizendo que, se a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, cortou o consumo de leite da sua recomendação alimentar, é claro que todo mundo deveria parar de beber leite e de comer queijo. Faria sentido, se fosse verdade. Embora existam várias notícias pelo Google dizendo que Harvard cortou o leite, o site da Universidade não confirma essa informação. O cardápio mais recente limita o consumo de leite e laticínios a uma ou duas porções por dia, o que é bem diferente de proibir. Poucas pessoas tomam mais de dois copos de leite por dia.

Por fim, a postagem fala da história de vida da Dra. Jane Plant. Plant teve câncer de mama repetidas vezes e se tratou com quimioterapia e radioterapia, e numa viagem à China, investigou os hábitos orientais, porque a incidência de câncer de mama lá é menor (vou chegar nesse ponto mais abaixo). Chegou à conclusão de que o problema era o leite (?) e que a intolerância a lactose é uma forma da natureza nos avisar (??) que não devemos beber leite (???) (eu já escrevi sobre leite e a origem da tolerância à lactose aqui). Seu relato é de que depois que cortou da dieta o leite e os laticínios, o tumor começou a diminuir de tamanho. Plant então escreveu um livro (Your life in your hands, ou “Sua vida em suas mãos”, em tradução livre) contando sua descoberta. (Eu comprei o livro, que não tem tradução para o português; prometo escrever sobre ele em breve.) A história termina triste: Plant faleceu vítima de complicações do câncer em Março de 2016 (embora isso não esteja na postagem que é de Junho de 2016).

Essa história tem vários problemas para ser usada como prova de que o leite causa ou estimula o desenvolvimento do câncer de mama. Primeiro, e mais grave de todos, ela se baseia em um relato, o que é chamado de evidência anedótica. Ou seja, um caso contado com base em uma experiência individual. O caso de uma pessoa vítima de uma abdução extraterrestre, cuja única testemunha é ela mesmo, é uma evidência anedótica de que extraterrestres existem. Confiável? Uma evidência anedótica não pode ser posta a prova: não poderíamos dividir Jane em duas e cortar o leite só de uma, para depois comparar os tumores. Pode ter sido tudo por um simples acaso: talvez o tumor diminuísse com ou sem leite (como tinha acontecido com os quatro anteriores). Outro problema com a evidência anedótica é que ela é sempre positiva; Jane não ia ter escrito um livro para dizer que cortar o leite da dieta não funcionou. Várias pessoas devem ter mudado a alimentação, nada aconteceu, e elas não pararam para fazer um textão no Facebook dizendo que não funcionou. Ninguém gosta de coisas que não funcionam.

Além disso, Jane era de fato uma cientista respeitada, mas da área da geoquímica, que estuda a composição química dos planetas e suas mudanças. Muito longe da área da biologia de tumores. O livro que Jane escreveu não pode ser considerado uma publicação científica. Não porque ele é escrito com uma linguagem simples e não especializada, mas porque ele não foi revisado e discutido por outros cientistas da área. Como cientista, Dra. Plant poderia ter escolhido publicar suas ideias sobre a relação entre leite e câncer também em revistas científicas, para que elas fossem testadas, discutidas e modificadas por outros especialistas. Mas isso nunca foi feito: Dra. Plant não tem nenhum trabalho publicado sobre câncer.

Mas o que explica a incidência de câncer de mama ser menor na Ásia? De acordo com os dados dos casos de câncer de mama até 2008 (TAO et al., 2015), a maior incidência desse tipo de câncer é de fato na Europa Ocidental (região da França e Alemanha, com 90 casos a cada 100 mil habitantes) e menor na África Oriental (basicamente países africanos banhados pelo Oceano Índico, como Etiópia e Moçambique, com 20 casos a cada 100 mil habitantes). A China tem 30 casos a cada 100 mil habitantes; de fato três vezes menos que a Europa. Mas a mortalidade é quase a mesma: 20 mortes a cada 100 mil habitantes na Europa e 15 mortes a cada 100 mil habitantes na China. Ou seja, a menor incidência de câncer de mama na China pode ser por falta de serviços médicos capazes de achar o tumor. As chinesas podem ter câncer de mama, mas nunca ficarão sabendo. Na verdade, a incidência de câncer de mama tem crescido na China, talvez devido a uma melhora nos serviços de saúde que deve vindo junto com o crescimento econômico recente (TAO et al., 2015).

De onde vem essa história de leite e câncer? Em 1989, o Dr. Cramer (de Harvard, citado na postagem) mostrou que existia uma correlação entre o consumo de leite e a incidência de câncer de ovário e hipotetizou que a lactose presente no leite seria a responsável (CRAMER, 1989). Como bom cientista, Dr. Cramer colocou sua hipótese a prova e viu que estava errado: em 1991, ele participou de um trabalho que mostrou que o consumo de lactose até protege contra o câncer, quando associado ao uso de anticoncepcionais (HARLOW et al., 1991). Em 2004, ele mostrou novamente que não há relação entre lactose e o aparecimento de câncer de ovário no total, embora exista uma relação para alguns tipos severos e raros de câncer de ovário (FAIRFIELD et al., 2004). Em 1997, pesquisadores americanos hipotetizaram que os hormônios presentes no leite poderiam induz o câncer de mama, mas isso acabou não sendo testado (OUTWATER; NICHOLSON; BARNARD, 1997). Me parece que as pessoas pegaram essas hipóteses, assumiram que eram verdades comprovadas e saíram a escrever abobrinhas.

O que a Ciência tem a dizer sobre a relação entre o consumo de leite e a incidência de câncer? A grande maioria dos estudos não encontrou nenhuma relação perigosa entre eles. Não existe associação entre o consumo de laticínios e câncer de mama (AL SARAKBI; SALHAB; MOKBEL, 2005; MOORMAN; TERRY, 2004) ou pâncreas (GENKINGER et al., 2014). Os níveis de cálcio e vitamina D também não estão relacionados com o câncer de pâncreas (GENKINGER et al., 2014). No caso do câncer de reto, um estudo não mostrou relação entre sua incidência e o consumo de leite (NORAT; RIBOLI, 2003), enquanto dois outros mostraram que o leite pode proteger contra esse tipo de câncer (AUNE et al., 2012; LAMPE, 2011). O leite também pode ser bom contra o câncer de bexiga (LAMPE, 2011). O único efeito negativo já comprovado é uma relação entre os níveis de cálcio e a incidência de câncer de próstata (quanto maior o cálcio, maior o risco), mas isso não é necessariamente só culpa do leite (LAMPE, 2011).

De qualquer forma, mesmo que você não queira acreditar em mim, um estudo brasileiro mostrou que o consumo de três porções diárias de laticínios é seguro para a saúde, mesmo considerando o cenário mais pessimista (CHAGAS; ROGERO; MARTINI, 2012). Em conclusão: leite não é uma das causas do câncer de mama.

Referências:

AL SARAKBI, W.; SALHAB, M.; MOKBEL, K. Dairy products and breast cancer risk: a review of the literature. International Journal of Fertility and Women’s Medicine, v. 50, n. 6, p. 244–249, 2005.

AUNE, D. et al. Dairy products and colorectal cancer risk: A systematic review and meta-analysis of cohort studies. Annals of Oncology, v. 23, n. 1, p. 37–45, 2012.

CHAGAS, C. E. A.; ROGERO, M. M.; MARTINI, L. A. Evaluating the links between intake of milk/dairy products and cancer. Nutrition Reviews, v. 70, n. 5, p. 294–300, 2012.

CRAMER, D. W. Lactase persistence and milk consumption as determinants of ovarian cancer risk. American Journal of Epidemiology, v. 130, n. 5, p. 904–910, 1989.

FAIRFIELD, K. M. et al. A prospective study of dietary lactose and ovarian cancer. International Journal of Cancer, v. 110, n. 2, p. 271–277, 2004.

GENKINGER, J. M. et al. Dairy products and pancreatic cancer risk: a pooled analysis of 14 cohort studies. Annals of Oncology, v. 25, n. 6, p. 1106–1115, 2014.

HARLOW, B. L. et al. The influence of lactose consumption on the association of oral contraceptive use and ovarian cancer risk. American Journal of Epidemiology1, v. 134, n. 5, p. 445–453, 1991.

LAMPE, J. W. Dairy products and cancer. Journal of the American College of Nutrition, v. 5, n. Suppl 1, p. 464S–470S, 2011.

MOORMAN, P. G.; TERRY, P. D. Consumption of dairy products and the risk of breast cancer : a review of the literature. American Journal of Clinical Nutrition, v. 2, n. 1, p. 5–14, 2004.

NORAT, T.; RIBOLI, E. Dairy products and colorectal cancer. A review of possible mechanisms and epidemiological evidence. European Journal of Clinical Nutrition, v. 57, n. 1, p. 1–17, 2003.

OUTWATER, J. L.; NICHOLSON, A.; BARNARD, N. Dairy products and breast cancer: the IGF-I, estrogen, and bGH hypothesis. Medical Hypotheses, v. 48, n. 6, p. 453–461, 1997.

TAO, Z. et al. Breast Cancer: Epidemiology and Etiology. Cell Biochemistry and Biophysics, v. 72, n. 2, p. 333–338, 2015.

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