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Gorduras, gorduras, gorduras!


Aproveitando o bonde do óleo canola da última postagem, hoje fui atrás de informações sobre os efeitos das gorduras saturadas sobre a saúde do coração. Mas antes de começar, o que são gorduras saturadas?

Quando as pessoas e a mídia em geral falam “gorduras”, eles normalmente querem se referir aos ácidos graxos, que são moléculas compostas por uma cadeia de átomos de carbonos ligados em sequência. Os ácidos graxos podem ser classificados como saturados, monoinsaturados ou poli-insaturados. Os saturados (que então são chamados genericamente de gordura saturada) têm apenas ligações simples entre os átomos de carbono e são encontrados principalmente em fontes animais, como leite, banha de porco e naquela capinha da picanha (mas o óleo de cocô e de dendê também são ricos em gorduras saturadas). Os insaturados possuem ligações duplas entre os átomos de carbono; os monoinsaturados têm uma dupla ligação entre alguma dupla de carbono da cadeia e os poli-insaturados possuem mais de uma dupla ligação. As gorduras insaturadas estão presentes principalmente em fontes vegetais, como azeite, óleo canola e sementes, como a noz (mas também em peixes de água fria). Os ácidos graxos poli-insaturados da família ômega 3 e ômega 6 são essenciais, porque não podem ser produzidos pelo metabolismo do corpo humano, e assim devem ser obtidos através da alimentação. Essas diferenças entre gorduras saturadas e insaturadas não são visíveis a olho nu, mas causam uma mudança fácil de ver na estrutura da gordura: as gorduras animais são sólidas (manteiga) enquanto as vegetais são líquidas (azeite). Isso também faz com que as gorduras saturadas sejam mais resistentes ao calor e a oxidação.

Dito isso, atualmente foi reacendida a discussão sobre quais gorduras são mais saudáveis e, com isso, quais deveriam ser consumidas e quais deveriam ser evitadas. A recomendação médica geral é que deveríamos evitar as gorduras saturadas, pois elas aumentariam o risco de doenças do coração. Mas, recentemente, uma vertente começou a recomendar que comêssemos de modo mais parecido com nossos ancestrais pré-históricos, evitando o consumo de óleos vegetais e açúcares refinados, e comendo mais proteínas, gorduras saturadas e cereais integrais. De acordo com a hipótese, nosso corpo estaria mais adaptado a esse tipo de alimentação, já que passamos 250 mil anos comendo isso (até uns 50 anos atrás). Então, o que a Ciência diz? O que devemos comer?

Antes, precisamos atentar ao fato das fontes de gorduras saturadas também serem ricas em colesterol, enquanto os óleos vegetais não. Isso é importante quando pensamos em doenças do coração, mas é pouco abordado nos artigos que eu li.

A literatura científica ainda não chegou a uma conclusão final sobre o assunto. Algumas pesquisas mostram que pessoas que comem pouca gordura, mas principalmente do tipo saturada têm menores riscos de desenvolver problemas cardíacos (GRIEL; KRIS-ETHERTON, 2006). Porém, se a dieta for rica em açúcares, esse risco é muito maior (GRIEL; KRIS-ETHERTON, 2006). O contrário não é verdadeiro; trocar o açúcar por gordura saturada não faz diferença (MICHA; MOZAFFARIAN, 2010). Dessa forma, a substituição de gordura animal por açúcar (comer menos manteiga para comer mais pão) é pior do que continuar comendo gordura saturada (SIRI-TARINO et al., 2010). Porém, diversas pesquisas mostram que a substituição de gordura animal por gordura vegetal (do tipo poli-insaturada) pode levar a uma redução nos riscos de doenças do coração (ASTRUP et al., 2011; FLOCK; FLEMING; KRIS-ETHERTON, 2014; FOSTER; WILSON, 2013; MOZAFFARIAN; MICHA; WALLACE, 2010; SIRI-TARINO et al., 2010).

Embora tenha sido mostrado que o consumo de óleo de dendê (rico em gordura saturada) aumenta os níveis totais de colesterol (SUN et al., 2015), existem diversos trabalhos publicados indicando que a simples redução no consumo de gorduras saturadas não leva a melhoras no quadro de doenças cardíacas (RAVNSKOV et al., 2014). Assim, alguns cientistas argumentam que a recomendação médica de diminuir a ingesta de gordura pode levar as pessoas a compensarem comendo mais açúcares, o que pode ser pior para a saúde (DINICOLANTONIO; LUCAN; O’KEEFE, 2015). De fato, os estudos indicam que pode ser melhor comer menos açúcar o que comer menos gordura animal (KUIPERS et al., 2011).

Com base no que li, minha conclusão é que a gordura, saturada ou não, não parece ser o principal vilão do coração. Consumida com moderação, ela não parece causar problemas. Por outro lado, o consumo de açúcar refinado parece ser pior e a redução do seu consumo deve fazer mais bem a saúde. Então, em um churrasco, prefira comer aquela picanha suculenta, mas lembrando de abrir mão da sobremesa no final.

Referências

ASTRUP, A. et al. The role of reducing intakes of saturated fat in the prevention of cardiovascular disease: where does the evidence stand in 2010? American Journal of Clinical Nutrition, v. 93, n. 4, p. 684–688, 2011.

DINICOLANTONIO, J. J.; LUCAN, S. C.; O’KEEFE, J. H. The Evidence for Saturated Fat and for Sugar Related to Coronary Heart Disease. Progress in Cardiovascular Diseases, doi: 10.1016/j.pcad.2015.11.006, 2015.

FLOCK, M. R.; FLEMING, J. A.; KRIS-ETHERTON, P. M. Macronutrient replacement options for saturated fat: effects on cardiovascular health. Current Opinion in Lipidology, v. 25, n. 1, p. 67–74, 2014.

FOSTER, R. H.; WILSON, N. Review of the evidence for the potential impact and feasibility of substituting saturated fat in the New Zealand diet. Australian and New Zealand Journal of Public Health, v. 37, n. 4, p. 329–336, 2013.

GRIEL, A. E.; KRIS-ETHERTON, P. M. Beyond saturated fat: the importance of the dietary fatty acid profile on cardiovascular disease. Nutrition Reviews, v. 64, n. 5 Pt 1, p. 257–262, 2006.

KUIPERS, R. S. et al. Saturated fat, carbohydrate, and cardiovascular disease. The Netherlands Journal of Medicine, v. 69, n. 9, p. 372–378, 2011.

MICHA, R.; MOZAFFARIAN, D. Saturated fat and cardiometabolic risk factors, coronary heart disease, stroke, and diabetes: a fresh look at the evidence. Lipids, v. 45, n. 10, p. 893–905, 2010.

MOZAFFARIAN, D.; MICHA, R.; WALLACE, S. Effects on Coronary Heart Disease of Increasing Polyunsaturated Fat in Place of Saturated Fat: A Systematic Review and Meta-Analysis of Randomized Controlled Trials. PLoS Medicine, v. 7, n. 3, p. e1000252, 2010.

RAVNSKOV, U. et al. The Questionable Benefits of Exchanging Saturated Fat With Polyunsaturated Fat. Mayo Clinic Proceedings, v. 89, n. 4, p. 451–453, 2014.

SIRI-TARINO, P. W. et al. Saturated fat, carbohydrate, and cardiovascular disease. American Journal of Clinincal Nutrition, v. 91, n. 3, p. 502–509, 2010.

SUN, Y. et al. Palm Oil Consumption Increases LDL Cholesterol Compared with Vegetable Oils Low in Saturated Fat in a Meta-Analysis of Clinical Trials. The Journal of Nutrition, v. 145, n. 7, p. 1549–58, 2015.

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