Pular para o conteúdo principal

Sala de cinema da Torre: O Óleo de Lorenzo


Hoje estou estreando uma nova sessão do blog: a Sala de Cinema da Torre! Aqui eu vou comentar alguns filmes cujo enredo aborde temas científicos ou filmes que usem besteiras científicas absurdas. Espero que vocês gostem!

Para começar, escolhi um filme que vi no ano passado para citar em uma das minhas aulas na disciplina Bases Moleculares das Doenças Metabólicas no curso de Farmácia. E o filme é incrível tanto como drama quanto como ciência. “O Óleo de Lorenzo” foi lançado em 1992, com direção de George Miller. O elenco conta com a participação de Susan Sarandon (indicada ao Oscar pela atuação), Nick Nolte, Peter Ustinov e Aaron Jackson. E o roteiro original (indicado ao Oscar) foi escrito por George Miller e Nick Enright.

O filme conta a história do casal Augusto e Michaela Odone e sua luta contra a doença de seu filho Lorenzo. Lorenzo foi diagnosticado com adrenoleucodistrofia quando tinha seis anos de idade. A adrenoleucodistrofia é uma rara doença genética que atinge um em cada 20 mil meninos nascidos. A doença atinge meninos em esmagadora maioria devido ao sua característica genética. O gene defeituoso que causa a doença está localizado no cromossomo X; as meninas possuem dois cromossomos X e então precisam ter os dois genes defeituosos para ter a doença. Caso tenham apenas um gene mutado, a doença não se manifesta (ou apresenta uma forma branda) porque apenas um gene funcional é capaz de dar conta do serviço. Porém, os meninos têm apenas um cromossomo X (o seu par é o cromossomo Y, com outros genes); assim se eles receberem um gene defeituoso, não existe um segundo gene “back-up” e a doença se manifesta.

O gene que causa a adrenoleucodistrofia é responsável por produzir uma proteína que leva um tipo de gordura (chamada de ácidos graxos muito longos saturados) para ser degradada pelas células. Sem esse gene funcionando, os ácidos graxos ficam em níveis muito altos e começam a se acumular pelos tecidos do corpo, principalmente nos neurônios. De uma forma que ainda não é totalmente compreendida, mas que parece envolver várias coisas, como diminuição da capacidade das células obterem energia, aumento dos danos causados por radicais livres e morte dos neurônios, o excesso desse tipo de gordura faz com que os nervos percam uma estrutura importante para seu funcionamento: a bainha de mielina. A bainha de mielina recobre os neurônios e permite a passagem dos impulsos elétricos dos nervos (como uma capa de um fio de cobre que impede um curto-circuito). Com a redução progressiva da bainha de mielina, os nervos vão funcionando cada vez pior, dificultando a comunicação entre o cérebro e os músculos. Na época, os pacientes sobreviviam até dois anos após o diagnóstico. Em 1984, quando Lorenzo foi diagnosticado com a doença, pouquíssimo era sabido sobre a doença.

Lorenzo viveu normalmente até seus seis anos, quando começou a apresentar os sintomas iniciais da doença: agressividade, desequilíbrio e problemas de audição. Com poucas informações sobre a doença e sem nenhum tratamento disponível, o casal Odone aceita que Lorenzo seja submetido a tratamentos experimentais com professores e cientistas. Um dos tratamentos tentados foi cortar qualquer fonte de ácidos graxos muito longos saturados na alimentação do Lorenzo. Porém, mesmo sem qualquer formação médica ou científica, o casal Odone resolveu por conta própria estudar mais sobre a doença para tentar ajudar o filho. Embora isso não seja retratado no filme, Augusto disse em uma entrevista que perguntou para o médico que deu o diagnóstico se poderia ler em livros de medicina sobre a adrenoleucodistrofia, e o médico respondeu que sim, mas que ele não ia entender nada mesmo. O médico não poderia estar mais errado!

O casal Odone chafurdou em livros básicos de medicina e bioquímica, e em revistas científicas especializadas. Levantou dinheiro em associações e universidades para trazer aos Estados Unidos cientistas de diferentes países que estudavam vários aspectos bioquímicos e fisiológicos da adrenoleucodistrofia e realizar um simpósio voltado para a discussão de novas formas de tratamento da doença. Retirar os ácidos graxos muito longos saturados da alimentação não estava trazendo resultados e o nível dessa gordura no sangue de Lorenzo continuava alto. Com base nos seus conhecimentos adquiridos sozinhos, os Odones chegam a uma explicação: sem os ácidos graxos muito longos saturados da alimentação, o corpo do paciente compensa aumentando a síntese dessa gordura internamente, a partir de ácidos graxos saturados menores, chamados longos. E com base nas informações trocadas no simpósio, um novo tratamento experimental é desenvolvido: além de tirar os ácidos graxos saturados muito longos, a dieta foi suplementada com uma grande quantidade de ácidos graxos insaturados longos. A ideia dos Odones partiu de um simples conceito bioquímico: a inibição enzimática por competição.

Como funciona? Os ácidos graxos saturados muito longos causam a adrenoleucodistrofia, mas os ácidos graxos insaturados muito longos são inofensivos. Mas os dois são produzidos da mesma forma no corpo, a partir de ácidos graxos mais curtos. Se o paciente comer uma grande quantidade de ácidos graxos insaturados, o corpo vai produzir muito mais ácidos graxos insaturados muito longos do que saturados, o que poderia resolver o problema. Surgia então o Óleo de Lorenzo, uma mistura de dois ácidos graxos insaturados.

A eficiência do Óleo de Lorenzo ainda é controversa: uma parte dos estudos não conseguiu mostrar melhora significativa dos pacientes; outros mostraram interrupção do avanço dos sintomas ou atraso no aparecimento da doença. O fato é que o tratamento com o Óleo reduziu os níveis dos ácidos graxos saturados muito longos no sangue de Lorenzo, além de atrasar o desenvolvimento dos sintomas. Lorenzo morreu em 2008, com 30 anos; muito mais do que os médicos esperavam.

O filme é cientificamente bem apurado, mas também mostra um interessante conflito social na relação entre cientistas e familiares dos pacientes. É extremamente difícil conciliar o ceticismo dos cientistas, que precisam testar novos tratamentos a exaustão, para garantir que eles funcionam e que não tem efeitos colaterais mais graves (o que é obviamente correto), com o imediatismo dos familiares dos pacientes que tem certeza que não podem esperar muito (o que também é obviamente correto).

Augusto Odone publicou quatro trabalhos científicos em revistas internacionais e fundou uma organização, chamada The Myelin Project, para ajudar pacientes de doenças neurodegenerativas e apoiar projetos de pesquisas científicas nessa área. Nada mal para quem não ia entender os livros médicos, não é, doutor?

P.S.: O filme está disponível no Vimeo, dublado em Português.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Não, a fosfoamina não é (ainda) a cura do câncer

Em agosto desse ano, uma reportagem do portal G1 mostrou a luta de pacientes com câncer na justiça para receber cápsulas contendo o composto fosfoamina (na verdade, fosfoetanolamina) que supostamente curaria a doença. O “remédio” era produzido e distribuído pelo campus da Universidade de São Paulo na cidade de São Carlos, mas a distribuição foi suspensa por decisão da própria reitoria, já que o composto não é registrado na ANVISA (todo remédio comercializado no país deve ser registrado) e não teve eficiência comprovada. Porém, alguns dos pacientes tratados com a fosfoamina relatam que foram curados e trazem exames e outras coisas para provar. Segundo o professor aposentado Gilberto O. Chierice (que participou dos estudos com a substância), “A fosfoamina está aí, à disposição, para quem quiser curar câncer”. Mas, vamos devagar, professor Gilberto; se a fosfoamina realmente é a cura para o câncer, por que não foi pedido o registro na ANVISA? O Governo Federal poderia produzir gran

Não, suco de melão São Caetano não é a cura do câncer

Recebi pelo Facebook um link para uma postagem do blogue Cura pela Natureza . Lá é descrito o poder de uma planta medicinal capaz de curar o câncer, controlar o diabetes e, de quebra, fortalecer a imunidade do corpo. Sinistro, né? A planta em questão é chamada de melão São Caetano ou melão amargo. Conhecida cientificamente como Momordica charantia , essa planta faz parte da família Cucurbitaceae, junto com outras plantas famosas, como a abóbora, o pepino e a melancia. Ela cresce bem nas áreas tropicais e subtropicais da África, Ásia e Austrália, e foi trazida ao Brasil pelos escravos. O texto cita o Dr. Frank Shallenberger, dos Estados Unidos, que seria o descobridor dos efeitos medicinais da planta. Fui então atrás das pesquisas publicadas pelo Dr. Shallenberger para saber mais sobre os poderes do melão São Caetano. E descobri que ele nunca publicou nenhum trabalho científico sobre a planta (na verdade, ele nunca publicou qualquer coisa!). Como que a

Rapte-me, Camaleoa!

Recebi recentemente pelo Whatsapp um vídeo do Instagram mostrando um camaleão escalando uma série de lápis de cor diferentes. Cada vez que ele encostava a pata em um novo lápis, a cor dele mudava rapidamente, de acordo com a cor do lápis. Muito legal! Pena que não é verdade. O vídeo era originalmente de um perfil de um camaleão de estimação e o responsável alterou o vídeo digitalmente, incluindo essas mudanças de cores rápidas no bicho. Ele deixou um aviso no vídeo original, explicando que era computação gráfica e que tinha feito só para ser divertido. Mas isso não impediu outras pessoas de retirarem o aviso e divulgarem pela Internet. Fazer o quê? Mas aqui embaixo tem um vídeo mostrando como de fato um camaleão muda de cor. Reparem duas coisas: 1) o vídeo está acelerado dez vezes, ou seja, a mudança de cor é lenta; e 2) ficando mais amarelo avermelhando, a última coisa que ele está fazendo é ficar mais camuflado. Eu sempre me perguntei como o camaleão sabia que cor ele tinha que esco