Eu usei esse título simplesmente para chamar a sua atenção, porque ele é muito ruim. Porém, é assim que a mídia brasileira produz as suas chamadas quando o assunto é o canabidiol (esse é o princípio ativo do “remédio da maconha”; já tinha ouvido esse nome?): “Justiça autoriza remédio derivado da maconha para menina...”, “Remédio derivado da maconha é usado para tratar...”, “Remédio à base de maconha alivia epilepsia em crianças...”, e por aí vai. Ser derivado da maconha deveria ser levado em consideração para liberar ou não um medicamento? Se ele fosse produzido a partir de pétalas de rosas brancas, suco de tangerina ou bosta de cavalo, isso deveria importar (ou causaria tanta repercussão da mídia?)? A resposta é simples: não! Para um remédio ser liberado para uso, o que importa é se ele é seguro e se ele funciona, independente da sua fonte. E isso eu não vi sendo informado pela mídia ou pelas pessoas passando abaixo-assinados virtuais pela liberação do uso do canabidiol. A propósito, se o canabidiol funcionou no filho da Dona Maria ou na filha do Seu José, isso não quer dizer que ele necessariamente funciona. Um remédio precisa ser testado em um grande grupo de pacientes, de forma controlada, para que sua eficácia seja definida. Então a pergunta que eu fui tentar responder foi: isso já foi feito?
Mas primeiro, o que é o canabidiol? Ele é seguro? Dá onda? O canabidiol é o principal de quase uma centena de substâncias canabinóides encontradas na maconha. Ele é cerca de 40 % do extrato de canabinóides da planta. Porém, o canabidiol não é o responsável pelos efeitos “de onda” do consumo da maconha, que são causados por outro composto, chamado tetrahidrocanabinol (ou THC). O THC é muito mais estudado que o canabidiol e muitas informações estão disponíveis sobre a sua ação no cérebro. Por exemplo, sabemos onde, nas células do cérebro, o THC se liga (nos chamados receptores CB1). Já o modo de ação do canabidiol ainda é bem menos claro. Porém, o canabidiol não tem os efeitos psicoativos do THC e, pelo contrário, parece inibir “a onda” causada pelo THC.
Existem poucas dúvidas de que o canabidiol possua efeitos antiepiléticos em diferentes modelos animais. Mas os estudos em humanos ainda são muito primários. Um levantamento da literatura científica mostrou que o canabidiol foi testado de forma controlada em apenas uma centena de adultos e crianças com diferentes graus de crises epiléticas. Se todos os estudos forem levados em consideração, 61 % dos pacientes apresentaram algum tipo de melhora. Isso indica duas coisas: primeiro, o canabidiol parece funcionar para algumas pessoas, mas mais estudos são necessários para entender como ele age no cérebro e porque ele trata apenas parte dos pacientes; e segundo, que o canabidiol está longe de ser o remédio milagroso que a mídia tenta pintar. Um problema extra é que o estudo com o maior número de pacientes (cerca de 25 % deles) foi feito pela GW Pharma, a empresa que comercializa o canabidiol nos Estados Unidos. Se eu fosse vender alguma coisa para vocês, é claro que eu iria fazer a melhor propaganda possível. Por isso, é preciso ter um pouco de cuidado ao se analisar esse estudo em especial.
Como não existe nenhum estudo independente e em grande escala sobre os efeitos antiepiléticos do canabidiol, é muito difícil tirar qualquer conclusão sobre o assunto. Mas pelo menos dois grandes estudos para verificar a ação do canabidiol em pacientes com Síndrome de Dravet (uma doença causada por mutações em genes específicos e que gera um grave quadro de epilepsia) serão iniciados em breve e assim teremos respostas mais claras em um futuro próximo. Felizmente, o canabidiol parece ser seguro, visto que pouquíssimos efeitos colaterais graves foram observados nesses pequenos estudos.
A ANVISA recentemente retirou o canabidiol da lista de substâncias proibidas e o escreveu como substância controlada (uma decisão acertada, na minha opinião). Isso vai facilitar que os pais com receita médica para canabidiol possa comprar o remédio legalmente. Mas é importante que a qualidade do canabidiol importado seja rigidamente controlada visto que o composto é purificado diretamente da maconha e pode vir contaminado com THC (e isso pode fazer os pacientes verem macacos em cima do poste). Porém, a liberação da ANVISA vai ajudar acima de tudo as pesquisas científicas brasileiras sobre o canabidiol. Antes os cientistas teriam que importar o composto ilegalmente se quisessem estudar seus efeitos, e como era ilegal, teriam que fazer isso com o seu próprio dinheiro e pela sua conta e risco. Agora estudos clínicos sérios vão poder ser realizados aqui e com pacientes brasileiros, o que vai nos dar respostas ainda mais claras.
Um grande avanço para a pesquisa brasileira e uma grande esperança para os pacientes e suas famílias.
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