Pular para o conteúdo principal

Desvendando (aos poucos) a memória

(Fonte: anabolismo.org)
Vocês já pararam para pensar em como o processo de guardar memórias no cérebro e lembrá-las depois é, em termos biológicos, muito bizarro? Nosso cérebro se resume, grosseiramente, a um montão de neurônios e outras células, cheias de proteínas dentro. Então, como raios isso consegue estocar o cheiro do perfume da sua mãe e fazer você se lembrar dele anos depois? Sinistrezas da Natureza! A Ciência ainda engatinha nessa área, mas alguns pontos do processo de como neurônios e proteínas viram memórias começam a ser entendidos. Por exemplo, alguns resultados mostram que o agrupamento e a estabilização de proteínas, chamadas de caderinas, na membrana dos neurônios, na região próxima às sinapses (que são os locais onde dois neurônios se “encostam” e se comunicam quimicamente) estão envolvidas na aquisição de memórias.

Outra proteína que tem papel nessa função do cérebro é a δ (letra grega delta)-cadenina. (Não é erro de digitação! Deixo claro que a culpa não é minha por duas proteínas diferentes terem nomes tão parecidos: uma é cadeRina e a outra cadeNina. ) Camundongos que têm uma δ-cadenina que não funciona têm problemas de aprendizado e memória, além de problemas na forma das sinapses dos neurônios e da sua plasticidade (ou seja, sua capacidade de serem desfeitas, formarem novas ou serem fortalecidas a cada nova situação enfrentada pelo organimso). Em seres humanos, problemas com a δ-cadenina estão associados a deficiências severas na função cognitiva e, possivelmente, doenças como a esquizofrenia.

Recentemente, pesquisadores do Canadá investigaram como a função da δ-cadenina seria regulada e sua relação com o processo de aprendizado e os resultados foram publicados na revista Nature Neuroscience. Eles sabiam previamente que a δ-cadenina era modificada por um processo chamado palmitoilação, ou seja, a célula liga uma molécula de lipídeo na estrutura da proteína. O efeito disso é variado, mas deixa a proteína com mais afinidade por gordura do que por água. Por exemplo, uma proteína palmitoilada consegue se aproximar da membrana das células, que é feita de lipídeo, de modo mais fácil. Os canadenses também sabiam que, nos neurônios, as proteínas ligadas a esses lipídeos se deslocam mais para as sinapses. Eles foram então estudar a relação dessa modificação na δ-cadenina com a função dos neurônios e a memória.

Os cientistas descobriram que a modificação da δ-cadenina aumenta depois que um neurônio é ativado, e depois essa modificação vai diminuindo. Além disso, o lipídeo ligado faz com que a δ-cadenina se ligue a proteína N-caderina na membrana do neurônio. Esse tipo de modificação na δ-cadenina é importante para que a N-caderina se estabilize na sinapse (o que parece estar envolvido com a memória, como escrevi no primeiro parágrafo). Mas ela também é importante para a forma do próprio neurônio, além de mudar o quanto uma célula se comunica com a outra. Depois, os cientistas estudaram camundongos treinados e viram que quando alguma memória era ativada, a palmitoilação da δ-cadenina aumentava, assim como a sua ligação com a N-caderina nos neurônios do hipocampo, região do cérebro responsável pela memória.

Esses resultados não têm aplicação prática no momento, mas são informações de pesquisa básica necessárias para que novos alvos para tratamento de doenças possam ser descobertos. No futuro, algumas dessas novas descobertas podem ajudar no combate a Alzheimer, esquizofrenia ou problemas cognitivos. A Ciência é feita passo-a-passo.

Referência

BRIGIDI, G. S.; SUN, Y.; BECCANO-KELLY, D.; PITMAN, K.; MOBASSER, M.; BORGLAND, S. L.; MILNERWOOD, A. J.; BAMJI, S. X. Palmitoylation of delta-catenin by DHHC5 mediates activity-induced synapse plasticity. Nature Neuroscience, v. 17, n. 4, p. 522-532, 2014.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Não, suco de melão São Caetano não é a cura do câncer

Recebi pelo Facebook um link para uma postagem do blogue Cura pela Natureza . Lá é descrito o poder de uma planta medicinal capaz de curar o câncer, controlar o diabetes e, de quebra, fortalecer a imunidade do corpo. Sinistro, né? A planta em questão é chamada de melão São Caetano ou melão amargo. Conhecida cientificamente como Momordica charantia , essa planta faz parte da família Cucurbitaceae, junto com outras plantas famosas, como a abóbora, o pepino e a melancia. Ela cresce bem nas áreas tropicais e subtropicais da África, Ásia e Austrália, e foi trazida ao Brasil pelos escravos. O texto cita o Dr. Frank Shallenberger, dos Estados Unidos, que seria o descobridor dos efeitos medicinais da planta. Fui então atrás das pesquisas publicadas pelo Dr. Shallenberger para saber mais sobre os poderes do melão São Caetano. E descobri que ele nunca publicou nenhum trabalho científico sobre a planta (na verdade, ele nunca publicou qualquer coisa!). Como que a

Não, a fosfoamina não é (ainda) a cura do câncer

Em agosto desse ano, uma reportagem do portal G1 mostrou a luta de pacientes com câncer na justiça para receber cápsulas contendo o composto fosfoamina (na verdade, fosfoetanolamina) que supostamente curaria a doença. O “remédio” era produzido e distribuído pelo campus da Universidade de São Paulo na cidade de São Carlos, mas a distribuição foi suspensa por decisão da própria reitoria, já que o composto não é registrado na ANVISA (todo remédio comercializado no país deve ser registrado) e não teve eficiência comprovada. Porém, alguns dos pacientes tratados com a fosfoamina relatam que foram curados e trazem exames e outras coisas para provar. Segundo o professor aposentado Gilberto O. Chierice (que participou dos estudos com a substância), “A fosfoamina está aí, à disposição, para quem quiser curar câncer”. Mas, vamos devagar, professor Gilberto; se a fosfoamina realmente é a cura para o câncer, por que não foi pedido o registro na ANVISA? O Governo Federal poderia produzir gran

Dr. José Roberto Kater e o ovo: vilões ou mocinhos?

Ontem, eu recebi pelo Facebook um vídeo de uma entrevista com o Dr. José Roberto Kater onde ele comenta sobre os benefícios do ovo na alimentação. Porém, algumas coisas me soaram um pouco, digamos, curiosas (na verdade, em pouco mais de três minutos de vídeo poucas coisas pareceram normais (o vídeo completo está disponível no fim do texto)). O Dr. Kater é, segundo a Internet, médico, obstetra, nutrólogo, antroposófico (a medicina antroposófica é um ramo alternativo com base em noções ocultas e espirituais), homeopata, acupunturista e com mais algumas outras especialidades. Porém, não é cientista, já que não tem currículo cadastrado na Plataforma Lattes (do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento, CNPq) ou assina qualquer artigo científico indexado em banco de dados internacional. Para mim, o cara pode dizer que é o Papa, eu não vou acreditar nele de primeira. As informações científicas estão disponíveis e eu fui pesquisar para entender se o Dr. Kater é um visionário ou ch